Crónica: “Jogo Invisível”

A compulsão distópica do treinador de futebol jovem na atualidade

O futebol é hoje em dia uma modalidade altamente industrializada, mediatizada, que movimenta milhões de euros tornando-se um terreno fértil para sonhos, mitos e heróis.

Essa espiral, extrema limites e amplifica efeitos que perplexamente, geram uma realidade, nalguns casos, distópica.

Um dos casos que merece ser analisado, é o da conduta do treinador de formação, face à sua substancial importância e impacto.

Um dos fenómenos centrais que tende a perturbar a melhor atuação do treinador (aumentando a pressão e toldando o seu discernimento), é a assunção generalizada que a avaliação da sua competência (em certa medida, o único bilhete para o seu sucesso) resume-se exclusivamente às vitórias e títulos alcançados. Um paradigma, felizmente, cada vez mais tido como obsoleto, e que, granjeei-a cada vez menos adeptos.

A tentativa de sair vitorioso auto idealizada, gera comportamentos compulsivos, muitas vezes enviesados emocionalmente, tendo como possíveis consequências a desconsideração de regras, ética, consciência, conhecimento, relacionamentos ou contributos de cariz científico, resultando numa adulteração do ambiente, tornando-o exacerbadamente fervoroso ou doentio.

Esta perspetiva internalizada pelo treinador, de gestão da sua própria carreira, terá a sua inspiração na cultura e realidade do futebol sénior e/ou profissional, resvalando patologicamente para os escalões de formação, contextos naturalmente distintos.

Alguns dos problemas decorrentes, que poderão agudizar resultante do mesmo são:

  • O uso abusivo de um estilo autocrático de liderança, assente em pressupostos megalómanos de impunidade percebida.
  • Um défice relevante na orientação para a intervenção pedagógica, para o comportamento ético e para o desenvolvimento efetivo dos praticantes.
  • A falta de empatia individualizada, para com cada indivíduo que compõe a sua equipa, desresponsabilizando-se do seu caso desportivo e desconsiderando-o a título pessoal.
  • Ineficiência relacional face a outros colegas de profissão (internos e externos) e colaboradores no seio da mesma organização, através de maledicência e tomadas de decisão geradoras de cisão e conflitos, a despropósito.
  • A radicalização da sua perspetiva pessoal face aos Encarregados de Educação. Generalizando de forma errática ou, contribuindo para o fomento de ódios de estimação, que resvalam para o domínio pessoal.

O denominador comum, é a degradação do processo numa perspetiva técnica. Com percas acentuadas de valor e de oportunidade geradoras de mais valia para os jovens, resultando na esmagadora maioria dos casos em ineficácia pessoal, insucesso, conflitos e por último, o próprio abandono do treinador.

Sublinhe-se, no entanto, que apesar de uma cota relevante de responsabilidade ser naturalmente associada aos treinadores, estes não são os únicos responsáveis, tendo esta questão, que ser entendida como um desafio mais amplo e sistémico.

Infelizmente, existem vários fatores que ajudam a explicar a falência psicológica dos treinadores de jovens, os quais parecem contribuir de forma conjetural, na atualidade, para o acentuar das dificuldades sentidas pelos mesmos, na gestão da pressão associada à sua carreira.

Consideremos algumas:

  • A necessidade emergente de mais quadros técnicos. Resultante da crescente procura de praticantes (e decorrente criação de mais equipas), gerando um desajuste na balança entre técnicos requeridos e técnicos adequadamente preparados, tendo como consequência percas de qualidade na intervenção diária.
  • A elevada exposição e escrutínio a que o treinador está hoje sujeito, independentemente do nível ou geografia. A prática desportiva desperta hoje uma atenção sem igual a nível social, noutras partes interessadas (como Encarregados de Educação ou Patrocinadores), nos próprios praticantes, e internamente, gerando análises nem sempre rigorosas ou justas, que apontam até ao mais despiciendo detalhe, provocando um nível de preocupação e atenção no treinador, desmesurado e contraproducente.
  • A dinâmica da própria profissão e do futebol atual, implicando que os treinadores se tornem autênticos profissionais em contextos vincadamente amadores, obrigando-os de forma precária, a um investimento muito superior ao retorno que conseguem atingir no imediato, tendencialmente em condições de trabalho, muito deficitárias.
  • A desproporcionalidade entre as boas práticas veiculadas, o grau de responsabilidade assumido ou o profissionalismo envolvido, e o retorno económico resultante. O compromisso que a maioria dos treinadores assume (três dias em média mais um de fim de semana), independentemente do nível, abdicando do seu tempo em família, resulta numa retribuição muito deficitária, pouco segura, com muitos deveres e poucos direitos.
  • O efeito Mourinho, associado ao otimismo romântico com que muitos encaram atualmente a carreira de treinador, visando uma melhoria vertiginosa da sua condição económica e de vida, procurando usar as pegadas de excecional sucesso, em contextos totalmente distintos, com expectativas irrealistas.
  • As alterações estruturais emergentes, na configuração da maioria das organizações desportivas, com o surgimento efetivo de novos níveis de poder hierárquico, no domínio técnico. Apesar de a médio e longo prazo essa evolução ser necessária e positiva, infelizmente, no imediato, a mesma tem resultado em infelizes episódios de abuso de poder, insegurança hierárquica, reduzida assertividade, restrição da autonomia dos colegas ou políticas de estandardização metodológica altamente questionáveis que prejudicam de forma séria e relevante o melhor desenvolvimento de outros colegas, acabando por projetar nos outros, as suas próprias agruras e frustrações, de forma lamentável e pobre.
  • A centralização do talento num nicho muito restrito de equipas. A evolução da prospeção e scout, resulta numa décalage de forças competitivas, polarizando as forças potenciais das equipas. Decorrentemente, o mesmo gera dificuldades antagónicas nos dois polos. Num caso, a dificuldade de proceder a um aprimoramento em contexto de sucesso facilitado (tendo o mesmo, impacto no desenvolvimento do self do atleta) por outro, a necessidade de reinvenção motivacional na abordagem (o que gera felizmente, também benefícios), sem meios capazes no imediato de proceder a uma estimulação competitiva natural.

Tendo o mesmo em consideração, importa refletir sobre que medidas tomar no sentido de proporcionar cada vez melhores condições de trabalho e de exigência, positiva, face aos treinadores de jovens em Portugal.

A perspetiva de um amadorismo reinante, já não se coaduna com a prática desportiva no séc. XXI. O desporto é demasiadamente impactante socialmente e relevante para os nossos jovens.

Nesse sentido, elenco algumas sugestões a considerar, no sentido de melhorar as condições de intervenção técnica no futebol jovem.

  • Repensar o modelo de sustentabilidade económica do desporto amador jovem, com a devida profundidade. Muitos dos problemas gerados no domínio técnico decorrem das parcas condições económicas, que geram efeitos diretos e indiretos, negativos.
  • Criar condições económicas efetivas para a sustentabilidade da carreira do treinador, gerando reais condições profissionais e legais para que estes se sintam seguros, e se possa exigir com mais rigor e acutilância a qualidade da sua intervenção.
  • Criar um modelo padrão de organização, assente em boas práticas, que possa ser generalizado a todas as organizações desportivas de forma estratégica e proporcional.
  • Reorganizar o modelo de desenvolvimento desportivo no futebol, numa lógica bietápica. Adoção estratégica de um modelo técnico, profissional e regulado de escola de futebol até aos onze anos de idade, privilegiando o desenvolvimento do praticante e diminuindo o relevo competitivo.
  • Definir padrões e perfis de competência de atuação do treinador por escalão etário, centrados sobretudo na qualidade dos processos de ensino e aprendizagem, avaliando construtivamente, através de parâmetros de análise quantificáveis.
  • Reciclagem contínua das regras, na prática inicial da modalidade, no sentido de promover uma adaptação saudável à modalidade e não ao seu exercício competitivo.
    • Criar um contexto mais inclusivo para o praticante e menos centrado no resultado desportivo para o treinador, de forma universal para todas as equipas, da base ao topo, adaptado de forma progressiva. Por exemplo, através da definição de um tempo mínimo de jogo obrigatório por convocatória e/ou plantel, reforçando a obrigatoriedade do uso das substituições.
  • Adotar como pressuposto estratégico, o esbater e a erradicação dos processos de seleção natural induzida de forma precoce (até à idade adulta), no geral, e em particular na adaptação psicológica à prática competitiva. Tendo por base o conhecimento cientifico, nomeadamente, ao nível do impacto da maturação no desenvolvimento performativo.
  • Criação de medidas concretas no estabelecimento de relacionamentos profícuos (a nível institucional e técnico) entre as organizações desportivas e os Encarregados de Educação, promovendo respeito, benefício mútuo e esvaziando a tensão bidirecional, treinador-encarregado de educação.

São as ideias e as reflexões apuradas, que devem nortear a ação, para que consigamos catapultar a resposta visando um progresso continuo de forma consistente.

Gonçalo Castanho
Especialista em Psicologia da Performance Humana