Mário Rolla: A Profissionalização da Arbitragem no Futebol

Mário Rolla, Doutorado em Ciências do Desporto e Prof. de Educação Física

 Em qualquer situação que aconteça na vida, para que exista uma garantia mínima de justiça e ordem é necessário que existam regras e uma hierarquia que facilite que as situações possam ser fiscalizadas, realizadas e cumpridas, como é o caso de um juiz num tribunal com as duas partes, ele está ali para proporcionar uma organização e uma consequente ligação para que ambas as partes tenham os seus processos resolvidos da melhor e mais justa forma. No caso de um jogo de futebol ou em qualquer competição desportiva, temos o árbitro ou a equipa de arbitragem; tal como refere Lima (1982, p.2) e completamente atualizada, não há competição desportiva oficial que dispense uma equipa de arbitragem. É a que faz respeitar as regras do jogo, a que oficializa os resultados. Situados acima dos que competem, os árbitros estão perante todos os outros intervenientes das atividades desportivas e são quase constantemente alvo de críticas, denúncias, insultos e até agressões físicas que não dignificam a prática desportiva.

 Dado que vou posteriormente citar algumas frases do que foi considerado o melhor árbitro do mundo, das várias correntes existentes, vou utilizar a italiana, onde segundo Duarte (2000, p. 99) descreve que a 17 de Fevereiro de 1529, em Florença, os políticos jogavam um jogo de bola chamado Cálcio, que coincide com o nome do campeonato nacional do futebol italiano; o jogo tinha 27 pessoas de cada lado e era utilizado para que os políticos pudessem resolver os conflitos que surgiam entre eles.

No séc. XIX, o futebol está mais organizado. Em 1868, surge a figura do árbitro. Ele anunciava as decisões aos gritos, foi surgindo o apito (…)” (Duarte, 2000, p.100). Foi na Inglaterra que o jogo se solidificou, com o surgir das regras. Serve esta afirmação como mote para o objetivo deste trabalho, a saber: a profissionalização da arbitragem.

 De maneira a aligeirar o conteúdo desta revisão narrativa, associada à descrição da bibliografia considerada mais importante para o tema, serão introduzidas observações de cariz pessoal; desta maneira, julgo ser mais fácil e mais assertiva a defesa da natureza do presente trabalho bem como as interligações entre os vários temas.

 De ressalvar que quando nos referimos a árbitros incluímos no termo, para facilitar, tanto os do sexo masculino como do feminino.

 

A REMUNERAÇÃO ATUAL NA ARBITRAGEM

 O ex-árbitro Pierluigi Collina afirmou numa entrevista que os árbitros não são atletas de alto rendimento, mas sim “juízes em campo”, que precisam ter uma boa condição física e mental para desempenhar as suas funções adequadamente (UEFA.com). O mesmo que, em janeiro de 2010, foi considerado o melhor árbitro de futebol da história pela I.F.F.H.S.[1], refere “Sábio é quem pensa. O árbitro não pode ser sábio, deve ser impulsivo, deve decidir em três décimas de segundo” (2006, Corriere della Sera). Mais recentemente, Collina, como presidente da Comissão de Arbitragem da F.I.F.A.[2] referiu que o árbitro que ambiciona atingir o topo da arbitragem do seu país, conseguir as insígnias da F.I.F.A. e, quem sabe, chegar a um mundial, tem de se preparar para tal, como um atleta do séc. XXI, independentemente das circunstâncias.

 Collina era árbitro profissional quando anunciou que abandonava a arbitragem em 2005, isto depois de não o permitirem arbitrar na 1.ª divisão italiana dado que tinha assinado um contrato publicitário com uma marca de automóveis por 1 milhão de euros, a mesma marca que patrocinava o A.C. Milan, por eventual conflito de interesses. Continuou ligado à arbitragem onde foi, por exemplo, o principal responsável pela introdução do V.A.R.[3].

 Para que não subsista qualquer eventual mau entendimento quanto ao que se refere a este prestigiado árbitro, ele proferiu uma das frases que mais gosto: “Uma empresa pode patrocinar os meus sapatos, mas nunca a minha consciência”, quando anunciou a sua retirada (2005, Diário de Notícias)[4].

 O assunto que pretendo abordar, apesar deste pequeno enquadramento, refere-se à profissionalização da arbitragem de futebol em Portugal,

– em Itália, os árbitros italianos foram oficialmente profissionalizados a 1 de Julho de 1975, de acordo com a “Legge Bacchelli”[5] (s/d, F.I.G.C.[6]);

– em Espanha, os árbitros espanhóis foram oficialmente profissionalizados em 1984, de acordo com o Real Decreto 1581/1984 de 28 de Dezembro, que estabeleceu a regulamentação da profissão de árbitro de futebol (s/d, R.F.E.F.[7]), apesar de só a partir de 1 de Setembro de 2020 possuírem contratos de trabalho, com plena dedicação, com controlo, não possuindo nada de diferente dos jogadores.

[1] I.F.F.H.S – International Federation of Football History and Statistics traduzida como Federação Internacional de História e Estatística do Futebol
[2] Federação Internacional de Futebol
[3] V.A.R. significa Video Assistant Referee, ou Árbitro Assistente de Vídeo
[4] https://www.dn.pt/arquivo/2005/collina-zangado-sai-para-a-reforma-620905.html
[5] Lei Bacchelli
[6] F.I.G.C. significa Federazione Italiana Giuco Calcio, ou Federação Italiana de Futebol
[7] R.F.E.F. significa Real Federación Espanhola de Futbol, ou Federação Espanhola de Futebol

 

– em Inglaterra os árbitros ingleses foram oficialmente profissionalizados em 1920 (2013, Football Association).

 Em Portugal, quando observamos um jogo de futebol e tentamos que essa observação seja de “cariz laboral”, rapidamente percebemos que o único “trabalhador” que está num jogo profissional que não é efetivamente um profissional na plenitude dos seus direitos de trabalhador é o árbitro e a sua equipa.

 Não tendo acesso aos valores reais de cada país, vou basear-me na publicação do Jornal MARCA[8], para fazermos uma mera comparação com os três países que foram acima citados no que se refere ao profissionalismo:

– em Itália: mensal (3 900-6 500€), jogo (3 400€), VAR (1 500€), Champions (7 000€);

– em Espanha: mensal (12 500€), jogo (4 200€), VAR (2 100€), Champions (7 000€);

– em Inglaterra: mensal (3 700€), jogo (1 300€), VAR (1 000€), Champions (7 000€);

Segundo o mesmo jornal, em Portugal, o único que se refere aos árbitros como semiprofissionais, temos: mensal (750€/1 500€/2 500€), jogo (1 500€), VAR (480€), Champions (7 000€).

 Um árbitro espanhol tem um rendimento bruto anual de 250 000€, um árbitro português 30 000€. Se verificarmos o calendário de cada época podemos muito facilmente saber quanto ganhou cada árbitro, simples matemática, número de jogos que arbitrou a multiplicar pelo valor bruto atribuído a cada jogo e no final do mês passa o recibo…uma prestação de serviços simples e sujeito à carga fiscal inerente.

[8] https://www.marca.com/futbol/2023/04/05/642c1803e2704e44578b459c.html

ENQUADRAMENTO DO ÁRBITRO NA LEGISLAÇÃO PORTUGUESA

 No Artigo 61.º (Categoria C1) no ponto 1 do Regulamento de Arbitragem 2022/2023 refere-se: “O árbitro da categoria C1 pode adquirir o estatuto de árbitro profissional”; no ponto 2 refere: “Aos árbitros da categoria C1 que tenham o estatuto de árbitro profissional pode aplicar-se, adicionalmente, regulamentação própria”. Na pesquisa realizada não encontrei “regulamentação própria”!!!

 Na investigação posterior ao consultar o Regulamento Disciplinar da F.P.F. na alínea b) artigo 4.º e no Regulamento da Competições organizadas pela Liga Portugal no Artigo 3.º – Definições surge:

“Para efeitos de aplicação do presente regulamento, considera-se:
a) «agente desportivo» os dirigentes dos clubes e demais funcionários, trabalhadores e colaboradores dos clubes, os jogadores, treinadores, auxiliares técnicos, árbitros e árbitros assistentes, observadores dos árbitros, delegados da Liga, agentes das forcas de segurança publica, diretor de segurança/ponto de contacto para a segurança, coordenadores de segurança, assistentes de recinto desportivo (ARDs), médicos, massagistas, oficiais de ligação de adeptos, maqueiros dos serviços de emergência e assistência medica, bombeiros, representante da proteção civil, apanha-bolas, repórteres e fotógrafos de campo e, em geral, todos os sujeitos que desempenhem funções ou exerçam cargos no decurso das competições organizadas pela Liga Portugal e nessa qualidade estejam acreditados, bem como os membros dos órgãos sociais, dos órgãos técnicos permanentes e das comissões eventuais da Federação Portuguesa de Futebol 
(FPF) e da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (Liga Portugal)”.

 Contactada a A.P.A.F.[9], através do seu Presidente, o Sr. Luciano Gonçalves, fez-me chegar a última proposta apresentada por aquele órgão intitulada “Ante-Projeto da Profissionalização da Arbitragem – Disponibilidade prioritária para a função. Proposta de Discussão”, datada, pasmei-me, de 05 de Dezembro de 2012 (ou seja, tem 11 anos!!). Ao ler a referida proposta pareceu-me bem estruturada, revelando bom senso no que a quantias se refere (“Profissionalizar não significa, por isso, dar-lhes quantias megalómanas de dinheiros (…) significa dar-lhes mais tempo e melhores condições de trabalho”, refere seguros, acompanhamento médico e fisioterapia, regime de segurança social, enquadramento fiscal, aspetos de ordem logística e operacional, proposta de vínculo contratual, política retributiva (onde se inserem: prémios de jogo, publicidade, direitos de imagem, etc.), um aspeto para mim fundamental, a reintegração na vida social, hoje em dia um ponto que ainda causa algumas dificuldades e onde o Comité Olímpico Português e a Associação de Atletas Olímpicos muito tem trabalhado.

 Resumindo: os árbitros são Agentes Desportivos, ou seja, os responsáveis por tomarem decisões imparciais em relação, por exemplo, às infrações cometidas pelos jogadores e o responsável máximo por aplicar as regras do jogo estão equiparados (sem qualquer demérito na comparação) aos apanha-bolas… estará esta situação correta? Não me parece…

[9] A.P.A.A.F. – Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol

ÁRBITRO COMO AGENTE DESPORTIVO

 Analisemos, então, o árbitro como agente desportivo, em termos fiscais e consultando o Código do IRS; a atividade de árbitro não se encontra expressamente prevista na Tabela do Código do IRS e não pode considerar-se como abrangida pelo Código de Atividade 1323 – Desportistas, pelo que deve ser-lhe aplicável o coeficiente de 0,35, relativo aos rendimentos de outras prestações de serviços. A determinação do rendimento tributável enquadrável na Categoria B (rendimentos profissionais e empresariais) do IRS, no âmbito do regime simplificado, obtém-se através da aplicação de diferentes coeficientes aos rendimentos obtidos pelo sujeito passivo. Estes coeficientes variam em função da natureza dos rendimentos, designadamente se respeitam a atividades profissionais especificamente previstas na tabela a que se refere o (artigo 151.º do) Código do IRS.

 Os rendimentos auferidos pelos árbitros, no exercício da sua atividade, qualificam-se, em regra geral, como rendimentos provenientes da prestação de serviços, sendo enquadráveis na Categoria B de IRS.

 A atividade de árbitro não se encontra especificamente prevista na referida tabela; será que a legislação em vigor pode ser interpretada como sendo um árbitro um “Desportista”, previsto na tabela de maneira a inserir a atividade profissional de um árbitro de modalidades desportivas, no nosso caso específico o Futebol, como profissional da Educação Física e Desporto? Diria, obviamente, que sim, o árbitro de máxima categoria tem necessariamente que trabalhar como um jogador de futebol, mas de uma forma mais específica, mas mais adiante já faremos essa análise. Voltemos à análise jurídica da questão…

 Segundo refere o especialista em direito tributário Rogério Fernandes Ferreira à Rádio Renascença em julho de 2021[10], “Se a atividade de árbitro se encontrasse abrangida pelo Código de Atividade 1323 – Desportistas ser-lhe-ia aplicável um coeficiente de 0,75, que equivale ao reconhecimento de um direito de dedução, automática, de despesas no valor de 25% do rendimento auferido, enquanto que no caso contrário lhe é aplicável um coeficiente de 0,35, que equivale ao reconhecimento de um direito de dedução, automática, de despesas no valor de 65% do rendimento auferido. (…) Neste contexto, uma tal diferenciação de tratamento, aplicando a praticantes desportivos um coeficiente de 0,75 e a árbitros o de 0,35, “representaria também uma diferenciação dificilmente compatível com a justiça do sistema fiscal, porque violadora dos princípios da capacidade contributiva e da proibição do arbítrio, que são subprincípios do princípio da igualdade fiscal”. De maneira a não suscitar qualquer dúvida neste aspeto, o Supremo Tribunal Administrativo proferiu, seguindo ainda o esclarecimento do especialista em direito tributário, que: (…) “o envolvimento e a importância dos árbitros para a realização de eventos desportivos não pode ser considerado como fator determinante para julgar que tais profissionais são, eles próprios, desportistas, sob pena de terem de ser considerados como desportistas todos quanto estão envolvidos no fenómeno desportivo”(…) , “não só os árbitros, mas também os médicos, os dirigentes, os empresários, e outros agentes desportivos previstos na Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto ficam abrangidos por este mesmo entendimento”. (…) “o que deve relevar para incluir um determinado profissional na Tabela do Código do IRS é a atividade, concreta e especificamente, por ele exercida”.

[10] https://rr.sapo.pt/bola-branca/noticia/futebol-nacional/2021/07/29/arbitros-nao-sao-desportistas-e-podem-deduzir-mais-despesas-do-que-os-jogadores/247866/

 

 Considera, também, o Supremo Tribunal Administrativo que “não existe qualquer violação do princípio da igualdade e da capacidade contributiva, na medida em que não existem razões legais para proceder a uma interpretação extensiva da atividade profissional de desportista, já que as funções e as tarefas exercidas por um árbitro não se incluem concretamente nesse conceito, nem com ele se confundem”.

 Em conclusão e como decorre do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12 de setembro de 2020, uniformizou-se a jurisprudência no sentido de que “não constando a atividade de árbitro, especificamente, da Tabela a que se refere o (artigo 151.º do) Código do IRS, ser-lhe-á aplicável o coeficiente de 0,35”.

 Para os interessados nesta matéria, que, tal como eu, não estejam muito ligados a este assunto, fomos analisar especificamente os dois coeficientes para perceber as diferenças, consultando a Autoridade Tributária e retirámos que o coeficiente 0,75 é mais benéfico para o contribuinte, do que o coeficiente 0,35, principalmente para os que possuem um rendimento mais baixo. O coeficiente de 0,75 é usado para calcular o rendimento tributável para trabalhadores independentes e empresários individuais com contabilidade organizada, enquanto o coeficiente de 0,35 é usado para aqueles com contabilidade simplificada.

 No estado atual e sem contrato profissional de trabalho, aos árbitros de futebol que arbitram a nível C1 deveria ser aplicado o coeficiente 0,75 em vez do 0,35, dado que em geral o seu rendimento mensal é incerto, depende do número de jogos para o qual são nomeados, de uma forma genérica e simples, um árbitro tanto pode ser nomeado para quatro jogos por mês, como para um e isso vai fazer depender o seu rendimento e o valor do recibo de prestação de serviços. Pode-se acrescentar que durante o último Mundial de Futebol e devido à data em que foi realizado, existiram árbitros que estiveram cinco semanas sem arbitrar um único jogo, não esquecendo o facto de que subsídio de férias e subsídio de Natal não existem para o árbitro… se arbitra recebe, se não arbitra não recebe…não me parece correta esta situação.

 

ÁRBITRO COMO DESPORTISTA

 Apesar do referido anteriormente, se os árbitros de futebol fossem considerados desportistas poderiam ter acesso a benefícios e apoios financeiros disponíveis para os atletas, como bolsas de estudo, patrocínios e subsídios. Além disso, eles poderiam ter acesso a benefícios fiscais e isenções nos impostos que estão disponíveis para os desportistas; a designação de desportista também pode significar mais regulamentações e obrigações, ou seja, poderiam ser obrigados a cumprir um número determinado de presenças nos centros de treino, assistir a palestras e a estágios…, contudo, já cumprem estas obrigações, sem correspondência ao estatuto que é negado para a maioria.

 Os mais céticos poderão referir que os árbitros de futebol já têm direito a subsídio de refeição e a transporte com motorista, obviamente, coloquemos um exemplo simples e que atualmente acontece devido às transmissões televisivas, há jogos a todas as horas, para poderem ser transmitidos nos vários canais desportivos privados para o efeito, imaginemos um árbitro do Algarve ou mesmo de Lisboa que tenha sido nomeado para arbitrar um jogo no Minho com início às 21:15h, depois do jogo e de cumprir todo o regulamento exigido chegará ao seu destino às 6h da manhã, ou às 3h respetivamente, fazendo um cálculo aproximado, não tem lógica ser transportado em vez de conduzir, obviamente que sim, salvaguardando o errado que é que os árbitros só têm acesso a carro com motorista nas competições da Liga, nos jogos da Taça de Portugal (F.P.F) têm que fazê-lo em viatura própria e conduzir os próprios carros, que apesar de lhe ser pago o combustível, é extremamente perigoso depois de realizar um jogo. Castillo et al. (2015) já referiam, num estudo realizado em Espanha, que as viagens podem afetar negativamente o desempenho dos árbitros, aumentando a fadiga e o stress. Os árbitros apresentaram uma redução na velocidade máxima alcançada e uma maior perceção de fadiga muscular e stress psicológico quando o tempo de viagem era superior a 3 horas ou a distância percorrida era superior a 300 km. Os autores concluíram que é importante garantir que os árbitros tenham condições adequadas de transporte para minimizar esses efeitos negativos. Eles sugerem que devem ser considerados fatores como a distância das viagens, o tempo de recuperação e o modo de transporte utilizado pelos árbitros para otimizar o desempenho e a saúde desses profissionais.

 Quando pensamos na figura do árbitro não o associamos a uma imagem positiva, muito pelo contrário, este agente desportivo é tido pelas massas como um ser corruptível e incapaz de executar um bom trabalho no desempenho das suas funções de arbitragem, sendo o alvo de críticas por parte dos atletas, dirigentes, comentadores desportivos e adeptos. A grande maioria das vezes essas críticas tornam-se em insultos e agressões verbais e, ocasionalmente, em agressões físicas (Carvalho, 2010). Costa et al. (2010) acrescentam que a arbitragem é um dos fatores mais controversos do desporto e referem que o árbitro é apontado como responsável do grau de insucesso ou sucesso do desporto.

 A designação de desportista poderia trazer alguns benefícios para os árbitros de futebol em Portugal, mas também pode trazer algumas obrigações adicionais e exigências, que já as cumprem na sua maioria.

 Depois de discordarmos do facto de um árbitro não ser considerado um desportista, vamos agora tentar fundamentar um pouco mais que, para além de desportista, o árbitro deve ser considerado um atleta de alto rendimento.

 

ÁRBITRO COMO ATLETA DE ALTA COMPETIÇÃO

 As dificuldades da função de árbitro ultrapassam o terreno do jogo. O árbitro deve, praticamente, em simultâneo observar, constatar, interpretar, julgar e punir ou absolver um jogador, o que não é fácil e não é qualquer pessoa que o consegue (Silva & Frómeta, 2002).

 Temos de contar ainda com o avanço da tecnologia nas transmissões televisivas que acaba por confrontar com a capacidade humana do árbitro, uma vez que o mesmo não dispõe deste recurso em tempo real para o ajudar nas suas decisões, as quais devem ser tomadas em frações de segundo. Atualmente, não são raros os jogos nas quais as situações do jogo são visualizadas por variadíssimos ângulos diferentes, provocando que as decisões da equipa de arbitragem tenham uma interpretação desigual (Gutiérrez & Voser, 2012).

 Não acredito na excelência, não acredito na perfeição, principalmente na atualidade, com o constante avanço da tecnologia com a vulgarização dos estudos e investigações, principalmente após a era “pós-Bolonha”, tiram-se conclusões com investigações onde muitas vezes a amostra é de um indivíduo/atleta, que surgem diariamente e que provocam inúmeras “conclusões” que são publicadas. As universidades, outrora fontes principais do conhecimento, tornaram-se dependentes da economia e são priorizados os aspetos financeiros ao conhecimento. Nas últimas décadas têm surgido inúmeros estudos centrados no desempenho superior em vários domínios, o que atesta a atratividade do conceito de Excelência. O seu étimo – excellentia – remete-nos para a Época Clássica, período no qual o Homem ambicionava alcançar o ideal da perfeição. Apesar do interesse da academia, não se encontra uma definição científica claramente operacionalizada e unanimemente aceite (Trost, 2000). O termo “excelência” está associado a conceitos como competência superior, sobredotação, expertise, criatividade, embora surja comumente associado a desempenhos superiores (Shavinina, 2009). A investigação da excelência no desporto também revela dificuldades em definir conceitos associados a este termo. Por exemplo, não existe consenso em torno dos critérios utilizados para definir o conceito de atleta de excelência (Polman, 2012).

 Acredito que há atletas melhores que outros, faço extensível esta opinião a treinadores, dirigentes, (…), e obviamente a árbitros… o erro faz parte do ser humano e faz parte da vida quotidiana, como do desporto, a necessidade do “publishing”, na minha opinião, vulgarizou a verdadeira e profunda investigação, esta situação afetou a veracidade do que se investiga, pois o que conta é a quantidade e não a qualidade.

 Por todos são conhecidos os valores incalculáveis pelos quais são transferidos os jogadores de futebol, chegando-se ao ponto de se fazerem cálculos do que ganha por segundo, e o árbitro… um jogador com ordenado astronómico para o comum mortal pode falhar um passe, uma receção e até um pontapé de penalty e essa repetição é vista “uma vez” nos media, uma falha de um árbitro é escrutinada de variadíssimos ângulos durante o decorrer de uma semana até que outro jogo aconteça e que outro árbitro volte a cometer um erro num determinado jogo, esta é a realidade do futebol português e é o que o adepto quer ver e ouvir, a culpa é “sempre” do árbitro.

 O árbitro faz parte integrante, fundamental e imprescindível para que o jogo se realize, mas é o elemento mais mal pago do jogo. Esta mentalidade tem e deve ser mudada, o árbitro, para que cometa o menor número de erros possíveis, tem de estar preparado física, técnica e psicologicamente, tão ou melhor que um jogador. Um árbitro tem o dever e a obrigação de acompanhar o jogo de forma a não errar e comunicar com os seus assistentes, V.A.R. e os elementos das várias equipas sem que o cansaço o afete, com uma comunicação clara e assertiva, sem ter necessidade de pausar ou de “tomar fôlego”, quer esteja no minuto dois do jogo ou no tempo de desconto e o seu discernimento para fazer cumprir as regras do jogo deve ser compatível a essa capacidade; para que isso aconteça, a condição física, os conhecimentos do regulamento e a experiência na análise devem ser máximas e estas premissas são treináveis e trabalhadas diariamente, da mesma maneira que um jogador profissional de futebol, logo, o árbitro tem e deve ser considerado e denominado como um árbitro profissional de futebol. Se o jogador é denominado de atleta, o árbitro não o é menos, na minha opinião.

 Ao nível das capacidades físicas, o árbitro de futebol possui uma atividade de grande exigência, em função desta situação uma elevada resistência à fadiga é fundamental, é esta elevada resistência à fadiga que permite que a tomada de decisão seja mais fácil e mais consciente. Analisemos alguns estudos existentes.

 No decorrer dos jogos de futebol, os árbitros desenvolvem atividades de baixa e moderada exigência física, envolvendo, predominantemente, o uso de energia produzida a partir do metabolismo aeróbio[11] e também desenvolvem atividades de elevado dispêndio anaeróbio[12]. Considerando-se, por esta razão, que a arbitragem implica um esforço do tipo intermitente (Silva et al., 2008), tal como os jogadores, quando a bola se encontra a ser jogada numa zona do campo oposta à dos colegas.

[11]A aerobiose refere-se a um processo bioquímico que representa a forma mais eficaz de obter energia a partir de nutrientes como a glicose (“açucar”), na presença obrigatória do oxigénio.
[12] Não existe a presença de oxigénio.

 

 O nível e as exigências do jogo que se colocam aos jogadores, afetam diretamente as ações e as exigências colocadas ao árbitro, a investigação tem vindo a mostrar evidências de que existe uma associação positiva entre as intensidades das ações dos jogadores de elite e o esforço despendido pelo árbitro (Castagna et al., 2007; Cipriano, 2015). Estas evidências têm sido encontradas entre árbitros e jogadores que realizem o jogo completo, mas não com os jogadores substitutos (Weston et al., 2011; Cipriano, 2015).

 Weston et al. (2012) referem que: “a prestação física do árbitro está diretamente relacionada com as prestações físicas dos jogadores”, e ainda que se encontrem algumas diferenças no decorrer de diferentes jogos de futebol, um dos fatores que determina a intensidade das ações do árbitro é a intensidade de cada jogo, que é medida pela quantidade total das ações de alta intensidade e velocidade de deslocamento dos jogadores de campo, no que se refere à distância total percorrida e à distância percorrida em sprint ao longo de toda a época desportiva (Malo et al. 2009; Weston et al., 2011; Cipriano, 2015).

 Não podemos deixar de referir que distância total percorrida é um fator que não pode ser tomado em conta na determinação da fadiga dos árbitros, já que 75% das ações motoras são deslocamentos em marcha, trote ou mesmo parado (Weston et al., 2007). Neste raciocínio deve ser também considerada a corrida para a retaguarda, onde o consumo máximo de oxigénio (VO2máx)[13] e a frequência cardíaca são 15% mais elevados do que na corrida para a frente. Ainda que não sendo efetuada em regime de sprint, a corrida para a retaguarda tem níveis de exigência mais elevados (por exemplo, no grau de intensidade, na resposta metabólica, bem como na resposta cardiorrespiratória) por isso de maior dispêndio energético do que a corrida para a frente (Silva et al., 2008).

 Weston et al. (2006) analisaram a carga física de árbitros de alto nível durante os jogos e verificaram que realizam um elevado número de sprints e mudanças de direção, referindo, ainda, que apresentaram uma frequência cardíaca média de 85% em relação à frequência cardíaca máxima. Concluem, tal como já tinha referido, que necessitam de possuir uma grande capacidade física para o tipo de esforço que lhes é solicitado. Castagna e D’Ottavio (2007), apresentam frequências cardíacas na ordem dos 85% a 90% da frequência cardíaca máxima, um consumo de oxigénio (durante o esforço) correspondente a 70-80% do consumo máximo de oxigénio. Rampinini et al. (2014) vieram corroborar o referido ao analisarem a carga de trabalho dos árbitros de alto nível em relação aos jogadores de futebol durante uma época inteira e concluíram que os árbitros realizam um volume similar de corrida de alta intensidade e de mudanças de direção em comparação com os jogadores e que os índices de lesão são menores. Esta última questão não surpreende, dado que não existem confrontos diretos e disputas de bola, desde que os níveis de condição física sejam bons.

[13] O VO2máx, também conhecido consumo máximo de oxigénio é um sinal de como está a capacidade cardiorrespiratória de um atleta. Trata-se do volume máximo de oxigénio que o organismo consegue captar, transportar e utilizar durante o exercício físico. Quanto mais elevado é o consumo máximo de oxigénio, melhor é a capacidade cardiorrespiratória do atleta.

 

Varley et al. (2017) analisaram, também, a carga física e fisiológica de árbitros de alto nível durante os jogos e verificaram que estes realizam um elevado nível de corrida de alta intensidade e apresentam um nível elevado de fadiga muscular no final dos jogos, acrescentando para além da grande condição física que devem possuir a um risco aumentado de lesões musculares, equivalente aos jogadores.

 Krustrup e Bangsob (2001) referem que os árbitros percorrem distâncias entre os 9 e os 13 km por jogo, e mais recentemente, Lovell et al. (2013) referem que os árbitros analisados percorrem em média uma distância entre os 10 e os 12 km, o que é equivalente a um árbitro de categoria C1 em Portugal. Este facto é relevante, tanto mais porque é evidente que a distância total percorrida pelo árbitro é semelhante à distância percorrida pelos jogadores do meio-campo (Stolen et al., 2005). A distância que ambos percorrem é semelhante, e tal acontece provavelmente devido ao facto de os jogadores de meio-campo servirem de elementos de ligação entre os sectores defensivo e ofensivo e por isso deslocando-se na mesma linha de ação que os árbitros, que têm esta mesma necessidade de circulação para melhor acompanhar o jogo (Castagna et al., 2007).

 Lago-Peñas et al. (2018) analisaram a prestação dos árbitros de futebol em relação à colocação no campo, ou seja, se o árbitro se posicionava mais próximo ou distante do lance, os resultados referiram que os árbitros que se encontravam mais próximos dos lances (que melhor acompanhavam o jogo), tomavam decisões mais precisas do que aqueles que não conseguiam ou que não tinham um posicionamento mais correto e se encontravam mais distantes. Para estes autores a condição física elevada relaciona-se com a tomada de decisão e capacidade cognitiva semelhante à dos jogadores.

 Num estudo realizado por Jordet et al. (2012) analisou-se a tomada de decisão dos árbitros de futebol em situações de eventual pontapé de penalty e foi observado que os mesmos possuem uma capacidade cognitiva equivalente à dos jogadores de futebol de alto rendimento e atletas olímpicos. Assim como o movimento dos olhos dos árbitros, sendo que concluíram que eles são capazes de prever a trajetória da bola com alta precisão.

 No estudo de Dicks et al. (2010) investigou-se a performance dos árbitros de futebol em testes de habilidade cognitiva, incluindo atenção sustentada, perceção visual e memória de curto prazo. Os resultados mostraram que os árbitros apresentam um desempenho semelhante ao de atletas de alto rendimento em tais testes. O estudo conclui que a habilidade cognitiva é um fator importante na performance dos árbitros de futebol, e que aprimorar essa habilidade pode melhorar a tomada de decisão em situações de alta pressão. Um estudo de Silva et al. (2008) veio reforçar o anterior, quando comparou o desempenho cognitivo dos árbitros com os jogadores de futebol e verificou que os árbitros tiveram um desempenho cognitivo similar aos jogadores na perceção visual e tomada de decisão, salientando que a arbitragem requer um alto nível de habilidades cognitivas.

 Helsen et al. (2004a), investigaram a perceção do tempo de reação dos árbitros de futebol em situações de jogo comparadas com os jogadores, os resultados mostraram que os árbitros possuem uma perceção do tempo de reação semelhante à dos jogadores de alto nível o que implica que possuem uma capacidade cognitiva e de tomada de decisão semelhante à dos jogadores para desempenharem o seu papel de forma adequada. Arbitrar um jogo de maneira imparcial, provoca com que os árbitros possuam a necessidade de tomar uma decisão rapidamente, muitas vezes não estando completamente seguros do que aconteceu, mesmo quando existe uma ação ambígua (Oliveira et al., 2011), lembremo-nos que apesar de estar bem posicionado, basta a passagem de um jogador pela frente para o árbitro poder ter de agir por instinto.

 Recordemos que os árbitros são avaliados por observadores durante os jogos, se os jogadores, possuem uma equipa técnica que está em pleno contacto com eles, os quatro elementos da equipa de arbitragem estão “isolados”, nem o próprio V.A.R. pode ter contacto com a equipa de arbitragem a não ser segundo o que consta no protocolo do V.A.R., que a meu ver deveria ser audível por todos, aspeto este que poderá ser alvo de uma outra reflexão, que não esta…

 Voltando à avaliação do árbitro, a faceta mais exposta, observada e comentada pelos vários intervenientes, envolvimento e dos media é a tomada de decisão, pois é ela que define, em último caso, a prestação positiva ou negativa do árbitro (Jones et al., 2012), esta prestação dos árbitros que, recordemos, estão constantemente sujeitos a avaliação por um observador, que vem inclusivamente indicado na nomeação do árbitro e que lhe é atribuída uma nota, onde se inclui, para além das decisões já referidas, o posicionamento, a condição física, a colaboração com a equipa de arbitragem, entre muitos outros aspetos… mas pensemos, a equipa de arbitragem tem de decidir imediatamente, os observadores, para além do que visualizam em campo ainda possuem a possibilidade de visualizar as imagens que lhe são disponibilizadas pela organização, podem se assim o entenderem, verificar as situações em que possuem mais dúvidas através da repetição do canal que transmitiu o jogo, podem, se o considerarem, ouvir as opiniões que os vários meios de comunicação social possuem na análise aos lances… ou seja, o jogador que ganha fortunas, falha ou acerta e tem um feedback imediato do jogador ou equipa técnica, o árbitro (em prestação de serviços), tem acesso pessoal à sua arbitragem no final do jogo, pode ter formulada a sua opinião, mas ainda tem de esperar até 4 dias, caso o seu jogo seja a uma sexta-feira, para receber o relatório e saber que nota teve; se fosse desportista ou atleta de alto rendimento no futebol, provavelmente o árbitro poderia levar com ele “alguém” da sua confiança, que lhe proporcionasse logo do início o aquecimento adequado e consequentes feedbacks durante o jogo que lhe permitisse prestar uma melhor prestação.

Defendo desde há muito o mesmo que Castagna e D’Ottavio (2007) referem ao demonstrarem que a idade nos árbitros é só um número, não interferindo com a capacidade de acompanhar um jogo, os árbitros arbitrando jogos onde possuem em certos casos quase o dobro da idade média dos jogadores (15 a 20 anos mais) mudam de movimento motor a cada 4 segundos, um valor que pode atingir 1268 diferentes ações por jogo.

Segundo o Regulamento de Arbitragem da F.P.F. 2022/2023 no seu Artigo 78.º nos pontos 4 e 5, respetivamente, referem: O árbitro e o árbitro assistente pode exercer a sua atividade até ao final da época em que faça 45 (quarenta e cinco) anos, desde que, no dia 1 de julho do ano civil do início da época em causa, tenha idade inferior a 45 (quarenta e cinco) anos.” e “O Conselho de Arbitragem pode, excecionalmente, permitir que o árbitro da categoria C1, CF1 ou árbitro assistente AAC1 de futebol e de futebol de praia e o árbitro da categoria C1, C2 e C3 de futsal possa continuar a exercer a sua atividade desde que tenha idade inferior a 48 (quarenta e oito) anos no dia 1 de julho do ano civil do início da época em causa”. Este aspeto do regulamento, está, na minha opinião, desatualizado e é necessário que seja revisto, nem que para isso os autores do Regulamento consultem médicos, cardiologistas, professores de educação física e desporto com experiência neste tipo de treino, fisiologistas do exercício (que deveriam também ser profissionais, outro assunto para um eventual trabalho), etc; a idade é um número, limitar a continuidade na arbitragem de alto nível ao fator idade é, no contexto atual, inadmissível. Se o árbitro mostrar que tem uma boa condição física nos testes físicos, se terminar a época desportiva bem classificado, digamos no “Top 10”, e quiser continuar, deve poder fazê-lo, reforça o apoio aos árbitros mais jovens e possui um fator para mim determinante no futebol atual:  a experiência para entrar num estádio seja ele qual for sem que o número de espetadores, os clubes que vai arbitrar, o mediatismo dos jogadores, treinadores ou dirigentes, o afete. Este fator limitativo que é a idade leva-me a concluir que quem elabora os regulamentos tem necessariamente de possuir uma assessoria de um profissional do exercício físico e não se pode limitar a aconselhar-se com ex-árbitros ou burocratas, é necessário que quem está no terreno seja ouvido nesta matéria. Weston et al. (2010) já há 13 anos defendem esta opinião (corroborada, mais recentemente, num estudo efetuado em 2018 com árbitros espanhóis por Morales et al. 2018) ao referirem: “Este é um facto que realça a importância de considerar os aspetos técnicos da prestação motora, a aptidão física, a prestação física em jogo e não meramente a idade quando se estabelece o limite para a carreira dos árbitros”. Defendo que estando bem física e tecnicamente, um árbitro com mais anos e mais experiência tem mais capacidade de concentração e de foco bem como melhor controlo da ansiedade que um árbitro mais jovem e menos experiente.

 No que se refere às leis, o legislador ao criá-las tem plena consciência de que aquilo que escreve será realizado, apesar de, em muitos casos, a interpretação que lhe é dada possa ser variada devido, a meu ver, pelo facto de a linguagem utilizada não ser percetível para o “comum dos mortais”, onde me incluo com consciência e humildade, o que me leva a ter que referir que se o jogador treina orientado por uma equipa técnica com um contrato estipulado, os árbitros também treinam, orientados por responsáveis pelos Centros de Treino espalhados pelo País, normalmente professores de Educação Física, orientados por um coordenador nacional que proporciona planos de treino mensais e a quem devem prestar contas da sua consecução, atualmente, em 3 plataformas diferentes. A maioria destes profissionais, em função da sua experiência e principalmente por serem autodidatas, fazem o que consideram melhor para os seus atletas (árbitros). Em geral, um árbitro possui entre 3 a 4 semanas de férias (tudo depende do fim e do início da temporada seguinte), 4 a 5 semanas de pré-temporada, descansando normalmente à quarta-feira e no sábado ou no domingo dependendo do planeamento semanal; durante a temporada, no dia após o jogo realiza uma sessão de recuperação ativa, mais 3 sessões e segue para o jogo seguinte, estando aqui incluídas as viagens. Normalmente o árbitro desloca-se para um local próximo do jogo que vai arbitrar e regressa a casa a seguir ao jogo. Não será este um trabalho de um atleta de alto rendimento? …julgo que sim.

 A situação é bastante mais complicada quando comparada com equipas de futebol, qualquer equipa de futebol sabe o seu calendário de jogos com muitos meses de antecedência e conhece os seus rivais de maneira a realizar o seu scouting[14] tranquilamente. Os árbitros e os responsáveis pelo Centro de Treino onde os mesmos estão afetos sabem com pouca antecedência onde vão arbitrar, se vão arbitrar, se vão fazer V.A.R. ou se não vão a lado nenhum… papel complicado para o responsável dos Centros de Treino, que tem a obrigação que o atleta esteja em plena forma no dia, na hora e onde quer que seja o local do País, para estar seguro que o árbitro reúne 100% de condições para realizar uma arbitragem a um alto nível. Existe algum Código Penal, ou alguma Lei de Bases que sirva de guia para o que acabei de referir?… Não.

[14]  O Scouting é um processo de observação e análise que tem como principal objetivo a recolha do máximo de informações ao nível individual (jogadores) ou coletivo (Equipas).

 

 Analisando a pouca bibliografia existente, leio palavras muito bem escritas, mas que na prática não se conseguem adaptar à realidade. Refiro (e comento) seguidamente algumas:

– Segundo Reilly e Gregson (2006), o árbitro tem de treinar de modo que possa responder às exigências do jogo e acompanhar os movimentos dos jogadores de elite. Deve-se considerar os árbitros como uma população independente dos desportistas e, tal como para qualquer atleta, o conhecimento das características específicas e demandas da competição deve permitir a elaboração de programas de treino específicos da sua atividade (Mallo et al., 2007). Em Portugal, não se verifica!

– Os conhecimentos da metodologia do treino que previnem ou retardem o aparecimento dos níveis de fadiga devem ser atendidos no planeamento do treino dos árbitros (Mallo et al., 2006). Apesar de as nomeações serem conhecidas com muito pouca antecedência, o responsável pela preparação física dos árbitros tem, obviamente, de ter em consideração o supracitado.

– Tal como para os atletas das modalidades coletivas de alto rendimento, que integram grande complexidade técnico-tática com uma forte componente física e um alto padrão coordenativo, a busca da excelência nesses desportos de grande exigência é fortemente suportada no estabelecimento de programas de treino e condicionamento eficazes que complementem e desenvolvam as habilidades técnicas da arbitragem (Cipriano, 2015). Em Portugal, pouco se verifica!

– Atualmente, o treino dos árbitros tende em centrar-se no trabalho de aptidão física tentando reproduzir as exigências do jogo, mas não respondendo às tarefas próprias do árbitro e/ou aos processos dinâmicos de tomada de decisão, o que poderá́ ser resolvido com a introdução e desenvolvimento das operações da aprendizagem no treino. (Macmahon et al., 2007). Em Portugal, pouco se verifica!

– As capacidades percetivas podem influenciar o número de decisões acertadas. Os erros de perceção, que são mais notórios no início das carreiras dos árbitros, podem ser diminuídos a partir do desenvolvimento de treino a longo prazo, o que poderá́ contribuir para a melhoria do número de acertos e na qualidade da arbitragem, como o demonstram os árbitros consoante vão evoluindo na idade (Pietraszewski et al., 2014). A idade como fator benéfico aliada à experiência, uma das minhas “batalhas”.

– Algumas investigações reportam que existe apenas uma pequena adaptação e desenvolvimento da capacidade aeróbia como consequência das habituais rotinas de treino e do tipo de atividade competitiva (Caballero et al., 2011). Defendo que o trabalho anaeróbio, a velocidade, a imagética, entre outros aspetos, são fundamentais na rotina de treino do árbitro.

– Se, por um lado, é o metabolismo aeróbio aquele que tem maior ênfase no treino, não se podem excluir os processos de treino anaeróbio, a agilidade, os movimentos como a corrida para a retaguarda e a corrida lateral (Reilly & Gergson, 2006), e se não existem diferenças entre a velocidade entre jogadores e árbitros, exercícios específicos que exigem velocidade com mudanças de direção deverão ser incluídos no treino (Aoba et al. 2010) tal como ocorre nos treinos dos jogadores de futebol. Aspetos que, entretanto, já fazem parte do normal planeamento do treino de árbitros.

– A adoção de uma metodologia de treino que integre unidades de treino com esforços intermitentes e exercícios específicos, deverá estar nas opções iniciais face à estrutura de treino de regime aeróbio (Helsen et al., 2004b). Aspeto que, entretanto, já faz parte do normal planeamento do treino de árbitros.

– Os árbitros de elite podem usufruir de uma melhoria na sua prestação no jogo se no seu treino, para a além da componente meramente aeróbia, introduzirem com regularidade exercícios intermitentes de alta intensidade (Krustrup & Bango, 2001). Aspeto que, entretanto, já faz parte do normal planeamento do treino de árbitros.

– Na realidade, os árbitros, especialmente os árbitros de elite, vivenciam um enorme volume de jogos e de treinos, o que faz com que o risco de lesão em treino e em jogo tenha a mesma probabilidade de ocorrência (Wilson et al., 2011). Tomando em consideração as exigências físicas, o padrão das lesões características do árbitro e a prevalência e reincidência de lesões músculo-articulares, o planeamento e periodização do treino deverá, portanto, desenvolver e integrar também rotinas e procedimentos preventivos das lesões (Bizzini et al., 2008, 2011). Aspeto que, entretanto, já faz parte do normal planeamento do treino de árbitros.

– Um treino estruturado e planeado, com esforços variados e do tipo intermitente, pode aumentar de forma significativa os níveis de prestação do árbitro (Weston et al., 2004). Face ao anteriormente expresso, existe a necessidade de os treinadores de árbitros de futebol trabalharem na aquisição da condição física e nas habilidades específicas da arbitragem, já que o treino poderá reproduzir as condições físicas exigidas no jogo. (Cipriano, 2015). Concordo, já é realizado e acrescento que no treino aumenta-se as condições físicas exigidas no jogo, sempre que é possível, baseado no planeamento realizado com as variadas soluções necessárias dependentes das nomeações.

– Existe uma reduzida abordagem ao treino dos fatores que se prendem com a resposta dos jogadores, a tomada de decisão e as habilidades de deslocamento e posicionamento. A interação em treino desses pressupostos juntamente com o a resposta de retorno sobre o resultado obtido em treino e/ou em jogo poderá elevar o nível de especialização do árbitro (Macmahon et al., 2007). Aspeto que, entretanto, já faz parte do normal planeamento do treino de árbitros.

Durante duas páginas referenciei alguns estudos realizados que reforçam a ideia de que se determinados aspetos fossem melhorados o árbitro poderia melhorar; se essa melhoria, que já existe ao nível do treino, significar que o árbitro já pode ser designado como um desportista e, mais concretamente ainda, como um atleta de alta competição, as premissas na área do treino já estão reunidas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concordo com Couto (2018) quando refere que o motivo da arbitragem ter tão má imagem deve-se e muito à comunicação social e aos comentadores televisivos, dirigentes e treinadores que acusam constantemente a arbitragem de ter influenciado o resultado do jogo disputado, quando este não lhes corre como gostariam.

Os atletas profissionais treinam diariamente, acompanhados por uma equipa de profissionais especializados dedicados a ajudá-los, isto é, são profissionais altamente preparados e, ainda assim, erram muitas vezes, mas quando o fazem são facilmente desculpados. Este benefício não é dado aos árbitros, que atuam nas mesmas competições que estes atletas, em condições de trabalho e preparação muito inferiores, e quando erram criticamos imediatamente o seu trabalho (Couto, 2018).

Sabemos que já existe uma experiência de profissionalização nos nossos árbitros de futebol e que alguns deles já recebem um rendimento fixo, independentemente da remuneração por jogo. Se esta situação se alargar aos restantes, proporcionamos uma estabilidade financeira e, por sua vez, pessoal que proporcionará aos árbitros um maior equilíbrio emocional, tanto para treinar como para arbitrar os jogos para o qual forem nomeados.

Não sendo jurista ou advogado, mas como profissional da Educação Física e do Desporto, na realização desta narrativa encontrei bastantes obstáculos no que se refere à interpretação da legislação, mas considero que a situação atual não pode continuar.

Sugiro pois que, pegando no esboço da proposta da A.P.A.F. e atualizando-a, na experiência que já se possui do pequeno número de árbitros que aufere um rendimento mensal fixo, e nos fundamentos apresentados em termos da comparação dos jogadores como atletas de alto rendimento com os árbitros, onde se verificou que apesar das funções diferentes, em termos físicos e fisiológicos são idênticas, deverá ser um jurista ou advogado a fazer a fundamentação desta passagem: os árbitros têm que deixar de ser agentes desportivos e devem passar a ser desportistas e os que se encontram na categoria C1 (onde já se encontram os internacionais), devem ser considerados como atletas de alto rendimento. A nível fiscal a mudança já seria significativa.

Deve-se terminar com o limite de idade na arbitragem; desde que reúnam condições para tal, em todos os aspetos, os árbitros devem continuar a arbitrar. Em função destas situações e dado que a carreira de um atleta é considerada de desgaste rápido, deve-se providenciar a realização de um contrato de trabalho que não deve ser inferior a dois anos, na minha opinião, seguindo algumas premissas, em termos de classificação no final da época e das condições físicas e que não obrigue à exclusividade.

Estejam os árbitros afetos à Federação Portuguesa de Futebol ou à Liga Profissional, a falta de recursos financeiros e a atual situação financeira do nosso País, não deveriam ser entraves para a realização deste sonho.

De acordo com a informação disponível no website oficial da Federação Portuguesa de Futebol, o investimento total na construção da Cidade do Futebol em Lisboa foi de cerca de 16 milhões de euros. A obra foi financiada pela F.P.F., com a ajuda do Turismo de Portugal e do Instituto Português do Desporto e da Juventude (I.P.D.J.). Com este investimento e as condições que a infraestrutura oferece, não é descabido considerar que “sede já existe” para os árbitros profissionais.

A principal fonte de receitas da Federação Portuguesa de Futebol é a venda dos direitos de transmissão dos jogos da seleção nacional e das competições organizadas pela Federação, como a Taça de Portugal e a Supertaça. Além disso, a F.P.F. também gera receitas com a venda de entradas para os jogos da seleção, patrocínios e licenciamentos de produtos.

De acordo com o Relatório e Contas da F.P.F. para o ano de 2020, a venda de direitos de transmissão e a venda de entradas foram responsáveis pela maior parte da receita da F.P.F., representando cerca de 58% e 18% do total, respetivamente. As receitas com patrocínios e licenciamentos de produtos representaram cerca de 17% do total, enquanto outras fontes de receita, como a venda de publicidade e serviços diversos, representaram os 7% restantes.

O Estado Português não destina nenhum valor direto para a Federação Portuguesa de Futebol. Isso acontece porque a F.P.F. é uma entidade privada e não recebe financiamento direto do Estado para suas atividades. No entanto, é importante destacar que a F.P.F. pode receber apoios indiretos do Estado através de programas de incentivo ao desporto e à cultura, como é o caso do Programa de Apoio ao Desporto (P.A.D.). O PAD é um programa do Instituto Português do Desporto e Juventude que visa apoiar financeiramente as atividades desportivas de entidades privadas e públicas, incluindo a F.P.F.

Além disso, o Estado Português pode conceder benefícios fiscais para as empresas que patrocinam a F.P.F. ou investem em projetos desportivos apoiados pela F.P.F.

Em função do atrás descrito, no que se refere à parte financeira, considero que com as várias opções referidas, desde que exista vontade e colaboração, não será por falta de verba que o profissionalismo da arbitragem não sucederá.

 

Artigo de Mário Rolla, Doutorado em Ciências do Desporto e Prof. de Educação Física